Fazendo meu caminho vi lampejos de beleza
Hoje talvez tomei muito café e meu coração com certeza vai alçar voo por vias ainda não definidas. Ai que canseira isso de viver - negócio perigoso mesmo, de lucidez obscena e pra sempre nos pedindo: espere um pouco. Eu tenho ficado cada vez mais craque em esperar, estou sempre esperando alguma coisa ou alguém, em especial porque chego cedo em todos os meus compromissos e meus amigos são uma horda de pessoas cronicamente atrasadas. Mas também tenho aprendido a amaciar o tempo do antes. Tem algo delicioso em manusear o tempo feito uma massa de pão, ali não tem ainda nada definido mas tudo ainda poder ser. Se no antes tudo pode ser, no depois tudo já foi, se desgastou, se exauriu, decepcionou ou foi embora pra comprar cigarros. Na análise, esse era sempre um tema (e aqui preciso que vocês leiam com a entonação da Maria Homem de Melo): afinal, o que eu tenho nunca está bom? O que eu já fiz e alcancei nunca é tão importante assim? O que está por vir sempre é melhor, mais brilhante, mais feliz, mais pleno? Que futuro é espaço onde não existem problemas e a vida caminha sem tropeços?
Aqui poderia cair no erro de tornar esse texto um insumo de post para a Obvious, mas eu, caro leitor, não deixaria isso acontecer com você nem comigo. A direção que tomarei não será a de apreciar, com o coração repleto de amor, as coisas que já temos, aquelas que um dia tanto quisemos e agora conquistamos. Primeiro porque o ser humano costuma querer muita coisa idiota e só vem a descobrir depois que já comeu o pão que o diabo amassou, segundo que, sinceramente, a vida mesmo nos melhores dias não é lá essas coisas. Não que eu seja uma deprimida ingrata, eu sou uma mulher até bem sensível, outro dia descobri que existe um nome em japonês para esses feixos de luz do sol que passam entre as folhas das árvores e irradiam de um jeito tão lindo. Chorei. Viu?
A beleza do mundo não me escapa, me comove muito, mas isso não torna a experiencia vida assim tão mais prazeroza. Aliás, tem um filme sobre isso, que também me fez chorar. As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty é um filme autobiográfico e experimental de um diretor chamado Jonas Mekas. Ele compõe um diário visual feito a partir de imagens caseiras registradas em Super 8 entre as décadas de 1950 e 1990. São cinco horas de filme, que não segue uma narrativa linear, com fragmentos da vida cotidiana — momentos em família, cenas domésticas, festas, caminhadas. Ele vai nos mostrando que, mesmo no fluxo banal do tempo, há lampejos de significado e ternura.
Mas se no antes nos apoiamos em uma miragem vivendo de ansiedade e expectativa, alimentando desejos movidos por faltas e no depois só nos restam memórias manchadas pelo tempo, pelas mágoas e pela culpa, então o que nos sobra? Ah, “o agora”, você me responde. E eu, já juntando minhas coisas para ir embora, digo que isso de agora nem existe e que nós vamos fazer um clube de leitura sobre fenomenologia porque eu não consigo ler Sartre sozinha, devido a imagem dele me assombar muito (eu não entendo nada dele nem de Merleau-Ponty, Husserl e muito menos Heidegger).
Porém, entre a simplicidade e a complexidade dos tratados filosóficos sobre experimentar o mundo existe muita coisa, existe por exemplo eu escrevendo esse texto sem pé nem cabeça. Quando digo que tenho me tornado craque em esperar quero dizer que já não deixo o depois me colocar em uma chave de braço, tirar meu ar e roubar meu dinheiro do lanche. Tenho tentado pensar que a vida nos está acontecendo o tempo todo: presente, passado e futuro se misturam dentro de mim e no mundo lá fora. Pra que tanta pressa? Nada é certeza e, ainda assim, nada é tão misterioso. Mesmo quando acontecimentos radicais mudam vidas, essas vidas dão um jeito de crescer em torno daquilo, costurando as feridas com as linhas duplas da Lygia e essa mesma vida nos convida a olhar pra cicatriz, lembrar e respeitar o passado. Exú diz: caminho se faz caminhando. A vida então não é o agora, o antes ou o depois, a vida é ir colocando um pé em frente ao outro, às vezes mais rápido ou devagar, e ir abrindo os caminhos. Às vezes, muitas vezes, surgem os comoventes lampejos de beleza, o universo faz sentido por uns segundos, depois não faz mais e voltamos a caminhar.